O Globo
Está completo o processo de radicalização
de Paulo Guedes. Encontrou ali, no catalisador de ressentimentos do
bolsonarismo, as condições para o pleno exercício de sua natureza. A dinâmica
dessa relação é perversa. O ministro seria alvo, segundo ele próprio, da
política. Seria a política, esse ente difuso, a lhe interditar o trabalho; a
operar por matá-lo.
Mas o que será essa política, que
criminaliza, senão o próprio Bolsonaro, que venera? Guedes dissimula — também
para si — a identidade de seu senhor. Não é bonito o lugar em que se coloca. É
consciente que o faz, contudo. Há confiança no trato; a satisfação segundo a
qual, ao aperto do couro, seguir-se-á o relaxamento. A retomada do ar. Prova de
prestígio. Um “ele me deixa respirar, afinal”. O humilhador que se junta ao
humilhado para ouvi-lo explicar — dando-se nota oito — por que rasteja; e que
ri ante a perdição do envergado.
É o presidente quem age para subjugar o
ministro; que, no entanto, sente-se protegido pelo estrangulador; que, depois
de lhe impingir mais um afogamento, leva-o a ver passarinhos.
Guedes, humilhado, é grato ao humilhador; porque a humilhação não lhe terá custado o cargo, assento caro ao ressentido que enfim tem a vez que o establishment lhe negava. Gratidão que expressa na forma adesista de radicalização.
A leitura da radicalização do ministro é
bom ensejo para analisar a tal moderação de Bolsonaro. Ele não baixou o tom.
Apenas fez girar a roleta dos inimigos. Voltou a atacar vacinas; que, não sendo
ministros do Supremo, não podem reagir. A moderação por falta de respostas.
Serviu-lhe. Precisava de alguma descompressão para que se conformasse o sistema
que imporá ao Orçamento de 2022 todas as cláusulas do contrato que firma a
sociedade do governo militar com Arthur Lira.
Bolsonaro ora evita confrontos de modo a
que se assentem os arranjos que, para muito além do novo Bolsa Família,
garantirão bilhões — aberta a capota do teto conversível de gastos — à engorda
dos militares, ao bolsa caminhoneiro, ao fundo eleitoral e, sobretudo, às emendas
do relator, onde se abriga o exercício do orçamento secreto. A isso se presta
Guedes. Não a ajudar os pobres. Mas a manipular a urgência da miséria para
abrir fundos destinados a bancar as campanhas de seu dominador e associados.
E por que precisaria o presidente
radicalizar neste momento decisivo para seu futuro, se pode terceirizar a
função a seu ministro da Economia?
O apoiador fundamental de Bolsonaro é
essencialmente antiliberal. Despreza o que Guedes representa. Um sujeito que,
condicionado pela mentalidade autocrática, considera reformas do Estado,
equilíbrio fiscal etc. conjunto avesso ao controle populista do poder. Para
esse tipo, ver o capitão submeter o símbolo liberal brasileiro é o gozo.
Bolsonaro, enquanto — sob formulação de
Guedes — azeita a máquina com que competirá em 22, entrega prazer aos seus com
Guedes catando liberalismos para justificar a forma submissa como flexibiliza
limites outrora ditos intransponíveis.
Há muito escrevo sobre o processo —
acelerado pela imposição da pandemia — de troca de pele de Bolsonaro, pelo
caminho ficando as capas com que se revestiu o estelionato eleitoral de 2018. A
carcaça do combate à corrupção já caíra. E a instrumentalização bolsonarista da
peste — paraíso para a forja artificial de inimigos — já expusera a
impossibilidade de um projeto reformista liberal, mesmo que houvesse
competência, prosperar sobre um chão de instabilidades promovidas pelo próprio
presidente.
Guedes era a fachada, o agente que
camuflava, pelo tal compromisso reformista, o que seria — independentemente de
qualquer privatização — adesão ao bolsonarismo pelos danieis-silveiras da Faria
Lima. Isso mudou. Guedes não apenas nos informa que sabia — e aceitou — ser
essa fachada; mas que a fachada agora caiu. E que foi derrubada por ele mesmo —
o próprio Daniel Silveira da Faria Lima.
Não há uma ala política contra a qual
lutaria no governo. A ala política é Bolsonaro — e a ela serve, bem entregue,
Guedes; talvez, aí sim, temeroso de que, mesmo assim, perca a cadeira. Foi o
ministro quem falou nas opções para viabilizar a farra orçamentária dos
joões-romas: ou a licença para gastar fora do teto, ou a forma puxadinho para
recalcular a altura do pé-direito fiscal.
Nada exprime melhor a radicalização de
Guedes do que a mentira que tenta armar uma oposição entre responsabilidades
fiscal e social; como se o Auxílio Brasil, ampliando a base de beneficiados e
pagando mais, não pudesse caber sob o teto. Poderia.
Fez-se uma escolha, entretanto. Para poder
pedalar com os precatórios. A de matar o Bolsa Família, programa de sucesso, de
natureza permanente, e implantar um projeto sem estudos, de caráter provisório,
a viger somente no ano eleitoral; que já contratou, em nome da reeleição do
mito, a inflação que comerá o que a sensibilidade social de Bolsonaro oferece
aos pobres, aqueles para quem dólar a cinco reais seria bom — né, Guedes?
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