O Estado de S. Paulo
A motivação para o fim do teto de gastos
nunca foi o social, nem foi pelos mais pobres ou pelo bem comum
A quem servirá o cavalo de pau na política
fiscal? O desmonte do teto de gastos e do Bolsa Família é revelador. A
responsabilidade fiscal e a responsabilidade social são simultaneamente
atacadas, quando deveriam andar de mãos dadas. O argumento é de que não haveria
outro caminho. Sempre há. A conta será paga pelos mais pobres.
Antes de tudo, registre-se: não há regra
fiscal perfeita. Esse tipo de construto jamais teria o condão de transformar a
miséria do nosso desenvolvimento econômico e das políticas mal-ajambradas da
última década. Para isso, seria preciso ter projeto, liderança, compromisso e
ação, sob regras de restrição orçamentária, claro.
O fim do teto de gastos, que denunciei
neste espaço em 28 de setembro, sempre foi fonte de preocupação da Instituição
Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal. Em agosto de 2020, o Conselho
Diretor da IFI alertou, em documento, sobre os riscos de mudar
voluntariosamente o teto de gastos.
Política é poder, ensinou Norberto Bobbio.
Nas democracias, delega-se poder a um grupo, por meio do voto, para que conduza
o país à luz da Constituição e das leis, isto é, dos objetivos da coletividade.
Quando a elite dirigente se perde em meio à falta de objetivos e de
sensibilidade social e aposta no vale-tudo para manter-se no poder, essa lógica
desmorona.
Se as veleidades pessoais se sobrepõem ao interesse comum, prejudica-se a discussão democrática de regras, de políticas públicas e de como financiar o Estado. Não por outra razão, membros da área técnica do Ministério da Economia deixaram a equipe.
O teto nunca foi a última maravilha do
mundo. Mas, como mostrou José Márcio Camargo no Estadão de sábado
(Um barco à deriva, 23/10, B2), as medidas
anunciadas na semana passada levantaram a âncora fiscal no meio da tempestade.
Isso nada tem que ver com a discussão possível e necessária sobre o melhor
arcabouço a orientar as contas públicas. Aliás, já está claro que partiremos do
zero em 2023.
A melhora da arrecadação destacada pelo
governo para justificar o abandono do teto veio da inflação, que perpassa todo
o quadro fiscal e econômico em 2021. O aumento da arrecadação tributária
decorrente de inflação alta é manjado; não tem nada de bom. Também a dívida
sobre o PIB diminuiu, mas porque o denominador inchou com a inflação. Os
irresponsáveis que comemoraram esse “feito” fiaram o desmonte do teto.
Essa mudança e o calote nos precatórios,
medidas abrigadas na mesma Proposta de Emenda à Constituição n.º 23, detonam a
responsabilidade fiscal. Assimila-se oficialmente a contabilidade criativa.
Para ter claro, o teto de gastos será
recalculado desde 2017. A inflação de junho acumulada em 12 meses dará lugar à
correção pela inflação até dezembro de cada ano (para 2017, variação de 7,2%).
Essa “sincronização” é um truque. Ora, nada garantiria que o cálculo proposto
redundasse num teto mais distante das cabeças de Bolsonaro e Guedes, exceto o
passado. Já se sabe qual foi a inflação em cada período e, assim, basta
calcular o teto para 2022 sob a nova regra para ver o que acontece.
De modo direto, a regra atual corrige o
teto de 2016 (ano-base) a 2022 em 32%. A nova regra o elevará em 36%. Assim,
caso a inflação termine 2021 em 8,7%, o espaço aberto será de R$ 47,5 bilhões.
Já o calote dos precatórios gerará folga de R$ 47,4 bilhões. Rombo total: R$
94,9 bilhões.
É o fim do teto de gastos. O reajuste
prometido no âmbito do Auxílio Brasil, novo programa a substituir o consagrado
Bolsa Família, e a extensão do Auxílio Emergencial (até dezembro de 2022) vão
custar R$ 47 bilhões. Cabe perguntar: para onde vão os outros R$ 47,9 bilhões?
A motivação nunca foi o social. A IFI
calculou que seria possível pagar integralmente os precatórios de 2022, com
gasto social adicional de cerca de R$ 14 bilhões. A contabilização correta dos
precatórios do Fundef (fundo da educação dos anos 1990) abriria outros R$ 16
bilhões, como argumentei no artigo da quinzena passada.
Não é novo o efeito que os ciclos
eleitorais produzem sobre a decisão de gastar. Mas o limite é dado pela lei.
Mudá-la oportunisticamente disparará o cenário pessimista. O processo é rápido:
os juros precificados para o fim de 2022 já estão em dois dígitos e a dívida
voltará a subir. A economia crescerá muito pouco no ano que vem, os empregos
não virão e a inflação persistirá.
O tiro poderá sair pela culatra se a
inflação corroer parte dos ganhos das transferências sociais. Será ainda pior
se os gastos adicionais forem direcionados ao tipo de despesa discricionária
que se pode fazer em tão pouco tempo: praças mal-acabadas, pinguelas, enfim,
dinheiro jogado para o ar.
“Nenhum homem é uma ilha (...); a morte de
todo homem me diminui, porque sou parte na humanidade; e então nunca pergunte
por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.” Parafraseando John Donne:
perguntem, leitores e leitoras, por quem os sinos dobraram com a morte do teto.
Não foi pelo gasto social, pelos mais pobres ou pelo bem comum.
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